O
entendimento tradicional do princípio da separação de poderes baseava-se na
ideia de que os tribunais só poderiam ter uma intervenção de sentido negativo
sobre a actuação administrativa, designadamente através da eliminação da ordem
jurídica dos actos administrativos que apresentassem vícios de ilegalidade. Por
isso, tudo o que implicasse uma pronúncia positiva sobre o modo de exercício do
poder administrativo era considerado uma intromissão ilegítima na função
administrativa[i].
Se é
certo que este é um domínio em que os espaços de intervenção da função
administrativa e da função jurisdicional se aproximam e as linhas de fronteira
se vislumbram ténues, a verdade é que sobre os tribunais administrativos “recai
o sagrado dever de fazer cumprir a lei e o Direito, em toda a extensão em que a
conduta da Administração se deve pautar por regras e princípios jurídicos”[ii].
Assim, apesar de o interessado não poder pedir ao tribunal que se substitua à
administração na emissão do acto devido, deve poder, no entanto, pedir-lhe que
condene a Administração à prática do acto, de acordo com as vinculações
normativas que permitam tal imposição, sem que se verifique a referida
intromissão no âmbito da discricionaridade administrativa.
Deste
modo, a revisão constitucional de 1997, ao conferir aos tribunais
administrativos o poder de procederem à determinação da prática de actos
legalmente devidos (artigo 268º, nº 4, da CRP), vem consagrar, também ao nível
dos meios processuais, o princípio da tutela jurisdicional efectiva dos
direitos dos particulares.
Se o legislador
constituinte não se comprometeu quanto à natureza da providência jurisdicional
ao utilizar a expressão “determinação”, já o CPTA veio posteriormente definir
que a tutela conferida assentaria numa pronúncia condenatória, no âmbito da
acção administrativa especial (artigos 46º/2, alínea b), e 66º/1).
Decorre
dos artigos 66º/2 e 71º/1 do CPTA que o objecto do processo é sempre a
pretensão do interessado, ou melhor, “o direito subjectivo do particular no
quadro da concreta relação jurídica administrativa”[iii],
pelo que, mesmo quando exista um acto de indeferimento, deve entender-se que o
processo incide sobre a posição substantiva do particular e não sobre o acto,
que é eliminado da ordem jurídica por força da pronúncia condenatória. Há,
pois, uma clara distinção entre as funções da acção de condenação à prática de
acto devido e da acção de impugnação de actos administrativos, uma vez que
esta, enquanto meio de defesa da legalidade por excelência, se basta com a mera
anulação do acto, enquanto aquela pressupõe a prática de um outro acto para que
a posição do particular seja salvaguardada.[iv]
Ao
proceder à delimitação dos poderes de pronúncia do tribunal, o artigo 71º
assume uma importância fulcral no contexto deste meio contencioso. O artigo
referido trata fundamentalmente do problema da discricionaridade administrativa
e, portanto, versa sobre os termos em que os tribunais administrativos podem
condenar a Administração à prática de actos administrativos, identificando os
grandes tipos de situações com que o tribunal se pode confrontar quando for
instado a condenar a Administração à prática de um acto administrativo.
Ponto
assente é o de que os tribunais não se podem intrometer no espaço de discricionaridade
da Administração, salvo, naturalmente, a possível sindicabilidade dos seus
aspectos vinculados, nomeadamente os relativos à competência, à adequação ao
fim prosseguido, à forma e aos pressupostos de facto, bem como do respeito
pelos princípios constitucionais, referidos no artigo 266º/2 da CRP (v.g.
proporcionalidade, justiça, igualdade, imparcialidade, boa-fé).
Em
qualquer caso, a condenação à prática de acto devido exige a prévia recusa ou
omissão ilegal de um acto administrativo, que tanto pode resultar da preterição
de um dever legal de decidir, como do dever de adoptar um acto de conteúdo
favorável, sob pena de, não tendo a Administração esse dever, o tribunal absolver
do pedido.
Como
elucidativamente refere MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “os processos de condenação à
prática de actos administrativos são processos de geometria variável, no sentido
em que não conduzem todos à emissão de pronúncias judiciais com idêntico
alcance”. [v]
Em
primeiro lugar, surgem as situações em que há uma vinculação legal quanto à
oportunidade e quanto ao conteúdo. Neste caso, o tribunal condena a
Administração à prática de um acto com um determinado conteúdo, referindo-se a
esta situação o nº 1 do artigo 71º. Mas, para além destes casos de estrita
vinculação legal, essa condenação à prática de um acto administrativo com um
conteúdo determinado pode igualmente ocorrer quando, não obstante a lei
conferir, em abstracto, poderes discricionários à Administração, a apreciação
do caso concreto permite “identificar apenas uma solução como legalmente
possível” (71º/2). Nestes casos de redução
da discricionaridade a zero o respeito pelas normas ou princípios violados
só consente que a Administração adopte um tipo de decisão, aquele que é
possível em face das circunstâncias.
Em
segundo lugar temos as situações em que a Administração tem o dever de praticar
o acto, mas não há vinculação quanto ao conteúdo nem se verifica uma redução da discricionaridade a zero. A
elas se refere directamente o artigo 71º/2, que confere, no entanto, ao
tribunal a competência para “explicitar as vinculações a observar pela
Administração na emissão do acto devido”. Sempre que está em causa o exercício
de poderes discricionários da Administração, as especificações contidas na
sentença têm apenas um conteúdo negativo, limitando-se a projectar “um efeito
preclusivo mais ou menos amplo sobre o subsequente reexercício do poder por
parte da Administração”[vi]
e a estabelecer as modalidades de actuação que à Administração ficam vedadas,
pela identificação e afirmação das ilegalidades em que incorreu o eventual acto
de conteúdo negativo.
Por
fim, a sentença poderá ter de limitar-se à condenação da Administração a
praticar um qualquer acto administrativo de (re)apreciação da pretensão do
interessado, sem determinação do conteúdo do acto, face aos amplos poderes
discricionários de que a Administração dispõe.
Neste caso, em bom rigor, o tribunal ainda “explicita as vinculações a
observar” (71º/2), mas a única vinculação possível será o dever de praticar o
acto. Esta situação poderá verificar-se fundamentalmente em dois casos: - em
caso de inércia ou omissão, em que a Administração não concedeu os elementos
para que o tribunal pudesse densificar os parâmetros a observar no exercício do
poder; - quando a Administração invoque a existência de questões prévias para
se furtar à apreciação da pretensão deduzida, o tribunal só poderá conhecer da inexistência
dessas questões e, com base nisso, condenar a Administração a pronunciar-se
sobre o mérito da pretensão.
O modo
típico de dedução do pedido de condenação à prática de acto administrativo é o
que resulta da apresentação de requerimento pelo interessado (artigo 67º)[vii].
Desta apresentação depende a constituição da Administração no dever de praticar
o acto devido, mas tal não é bastante, exigindo-se ainda a verificação de uma
das situações previstas nas alíneas do nº 1 do mesmo artigo, que constituem
condições de admissibilidade do pedido. São elas:
a)
Falta de decisão expressa dentro do prazo
legal;
b)
Recusa da prática de acto com um certo
conteúdo;
c)
Recusa de apreciação do requerimento.
a)
Relativamente à alínea a) do artigo supra citado, está em causa uma
situação de omissão ou inércia administrativa, pelo que se torna desde logo
premente determinar em que circunstâncias há um dever de decidir por parte da
Administração. A este propósito o artigo 9º/1 do CPA, ao densificar o artigo
52º/1 da CRP, consagra um dever geral de pronúncia da Administração sobre os
assuntos apresentados pelos particulares em defesa dos seus interesses que se
encontrem no âmbito da sua competência. Mas o nº 2 do mesmo artigo vem restringir
este dever nas situações em que, há menos de dois anos contados da data de
apresentação do requerimento, o mesmo interessado tenha dirigido ao órgão
competente um requerimento com o mesmo pedido e os mesmos fundamentos de facto
e de direito e esse requerimento haja sido objecto de decisão expressa. Nestes
casos, a recusa de pronúncia do órgão não pode originar um processo destinado à
obtenção da decisão, porque não existe qualquer dever legal de actuação por
parte da Administração.
Mas
quando é que existe omissão por parte da Administração? Caberá o acto tácito de
deferimento na figura da omissão ou esta engloba somente o acto tácito de
indeferimento?
Relativamente
ao acto tácito de indeferimento não surgem dúvidas de que o legislador do CPTA
eliminou a possibilidade da sua impugnação. No regime anterior, a regra era a
de considerar tacitamente indeferidas as pretensões que não eram objecto de
decisão da Administração no prazo legalmente definido, no sentido de se
ficcionar a existência de um acto impugnável, como se se tratasse de um acto
administrativo de conteúdo negativo. Esta ficção legal, ainda prevista no
artigo 109º/1 do CPA, passou a ser desnecessária a partir do momento em que o
CPTA alargou o acesso à jurisdição administrativa, deixando de a condicionar à
existência de um acto administrativo passível de fazer accionar o recurso de
anulação. Com a introdução da acção administrativa especial de condenação à
prática de actos devidos deve entender-se que o artigo 109º/1 do CPA foi
tacitamente derrogado na parte em que reconhecia ao interessado “a faculdade de
presumir indeferida a pretensão, para poder exercer o respectivo meio legal de
impugnação”, “pelo que este segmento do preceito referido passou a dever ser
lido como estabelecendo que a falta de decisão administrativa confere ao
interessado a possibilidade de lançar mão do meio de tutela adequado, que,
hoje, é a acção de condenação à prática de acto devido”[viii].
Ainda nas palavras de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, “o incumprimento, no prazo legal,
do dever de decidir, por parte da Administração (…) passou, assim, a ser
tratado como a omissão pura e simples que efectivamente é, ou seja, como um
mero facto constitutivo do interesse em agir em juízo do requerente para obter
uma decisão jurisdicional de condenação à prática do acto ilegalmente omitido”[ix].
Mas, tal não contende com a manutenção em vigor do preceito do CPA,
nomeadamente porque continua a ser o seu nº 2 a fixar o prazo-regra para a
Administração decidir das pretensões que lhe são dirigidas, do mesmo modo que é
o nº 3 a definir o regime de contagem dos prazos.
Questão
controvertida é a de saber se também os actos tácitos de deferimento (artigo
108º CPA) podem constituir uma omissão para efeitos do artigo 67º/1 a) do CPTA.
Assentando
a sua doutrina na ideia de que o deferimento tácito é um acto administrativo tout court, porque o efeito de
deferimento resulta da presunção legal de que, uma vez ultrapassado o prazo de
decisão, a pretensão do requerente estaria em conformidade com as exigências da
ordem jurídica, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA considera que a emissão de um novo acto
(que resultaria da procedência do pedido de condenação à prática do acto devido)
implicaria uma “duplicação de efeitos jurídicos”, uma vez que os efeitos
pretendidos com o novo acto já tinham sido obtidos pelo acto tácito. Assim, os
casos de deferimento tácito não estariam abrangidos pelo artigo 67º/1, alínea
a)[x]
e, quando muito, o particular só poderia recorrer a uma acção administrativa
comum que permitisse o reconhecimento de que o acto tácito se produziu, quando
para tal existisse o necessário interesse processual.
Diferentemente,
VASCO PEREIRA DA SILVA realça a idêntica natureza jurídica dos actos tácitos de
deferimento e de indeferimento, considerando que em ambas as situações nos
deparamos com ficções legais. Refere o Professor que deixou de ser necessário recorrer
a tais “ficções” também nos casos de deferimento tácito tendo em conta a actual
plena jurisdicionalização do contencioso administrativo, que prevê um mecanismo
próprio de reacção contra omissões ilegais, através da condenação à prática de
acto devido. Além disso, há sempre a possibilidade de o deferimento tácito não
corresponder integralmente às pretensões do particular ou, no âmbito de
relações multilaterais, ser favorável a uns mas não a outros dos sujeitos
envolvidos.[xi]
Daí que também quando estejam em causa actos tácitos de deferimento o meio
contencioso a fazer actuar deverá ser a acção especial de condenação à prática
de acto devido.
Salvo
o devido respeito, parece-me que não faz sentido manter soluções anacrónicas
desenvolvidas para fazer face às limitações de um contencioso que assentava no
recurso de anulação, quando se prevêem meios que satisfazem mais plenamente as
pretensões dos particulares e que dispensam o recurso a expedientes legais,
como sejam as ficções. Assim, também no caso de deferimento tácito o “silêncio”
da Administração deverá corresponder a um mero facto constitutivo do pedido de
condenação à prática de acto devido.
b)
Pela
alínea b) estamos perante situações de negação das pretensões substantivas dos
interessados, o que implica um conhecimento do mérito das questões. Como refere
VIEIRA DE ANDRADE “o indeferimento, sendo embora uma acção, equivale a uma
omissão do ponto de vista da esfera jurídica do particular (…), na medida em
que terá sido recusada a prática do acto devido”[xii].
Aqui tanto poderá, pois, estar em causa a recusa de prática de um acto expresso
de conteúdo vinculado, como a recusa de um acto que envolva poderes
discricionários[xiii].
A decisão de condenação tem o alcance de remover da ordem jurídica os efeitos do
acto de indeferimento, constituindo a Administração no dever de se pronunciar
novamente, mas agora em respeito do caso julgado formado pela sentença.[xiv]
c)
Os casos desta alínea consubstanciam situações
de indeferimento liminar, em que a Administração não conhece do fundo da
pretensão, limitando-se a afirmar expressamente que não aprecia o requerimento.
Estarão em causa duas situações distintas: a rejeição do requerimento por se
verificarem os motivos referidos nos artigos 83º e 173º CPA e a recusa de
apreciação fundamentada em discricionaridade quanto à oportunidade de decidir
ou à determinação dos pressupostos de exercício da competência[xv].
[i] “(..) de acordo com o “figurino”
francês, o Contencioso Administrativo tinha como “centro” o recurso directo de
anulação, pelo que a condenação da Administração só era admitida, enquanto tal,
de forma limitada, no domínio das acções (em matéria de contratos e de responsabilidade)
e, de “forma encapotada”, no âmbito do contencioso de anulação, através da
ficção do “acto tácito de indeferimento”, SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da
Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo Processo Administrativo, 2ª
edição, Almedina, 2009, p. 379.
[ii] ALMEIDA, Mário Aroso de, Sobre as acções de condenação à prática de
actos administrativos, in Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, Temas e Problemas de Processo Administrativo,
2ª edição, p.108.
[iii] SILVA, Vasco Pereira da, ob.cit, p.385.
[iv] Cfr. Acórdão do Tribunal Central
Administrativo Norte de 25.10.2007 (Processo nº 00236), que conclui “uma vez
que a G… intentou expressamente uma AAE de condenação à prática de acto
legalmente devido, isso significa que não elegeu como objecto do processo uma
pretensão anulatória, mas antes uma pretensão condenatória, ou seja, a
condenação da entidade ré à prática de um acto administrativo que reputa de
ilegalmente omitido ou recusado”, mas “apesar da AAE intentada por G… ter como
objecto uma pretensão condenatória, e não uma pretensão anulatória, isso não
significa que não tenha de ser apreciada a legalidade do acto de recusa em
causa, dado que a ilegalidade deste constitui condição de procedência do pedido
de condenação”.
[v] ALMEIDA, Mário Aroso de, ob. cit., p.110.
[vi] ALMEIDA, Mário Aroso de, ob. cit., p.112.
[vii] O CPTA também prevê a possibilidade de
dedução de um pedido de condenação à prática de acto devido em cumulação com a
impugnação de um acto administrativo, nas situações previstas no artigo 47º/2,
alínea a), nomeadamente quando estejam em causa actos de conteúdo ambivalente,
i.e., que se caracterizam por possuírem, simultaneamente, um conteúdo positivo
e um conteúdo negativo em relação à pretensão. Do mesmo modo, o Ministério
Público pode reagir contra situações objectivas de inércia no cumprimento da
lei, por força do artigo 68º/1, alínea c), sem que tal dependa da apresentação
de requerimento e do preenchimento dos pressupostos do artigo 67º/1.
[viii] ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, reimpressão
da 1ª edição, Almedina, 2012, p. 323.
[ix] Idem,
p.324
[x] Em sentido semelhante, vide ANDRADE, José Carlos Vieira de, A justiça Administrativa – Lições, 11ª
edição, 2011. P. 202, nota 509.
[xi] Posição particular é a de Paula Barbosa
que, na esteira de Colaço Antunes, considera que apesar de o CPTA não colocar
em causa a figura do deferimento tácito, “há que repensar, de iure condendo, a legitimidade do deferimento tácito”, uma vez
que “a partir do momento em que há uma via de garantia para obter uma decisão
judicial do tipo da que está prevista na acção condenatória, quando se trate de
acto administrativo vinculado, as “ficções” deixam de ser razoáveis, ainda mais
quando o seu fim não é permitir apenas uma impugnação de acto (…) mas sim
conceder a pretensão, sem a ponderação de interesses e de mérito devidas”, A acção de condenação no acto administrativo
legalmente devido, Aafdl, 2007, p. 54.
[xii] ANDRADE, José Carlos Vieira de, ob. cit., pp. 202 e 203, nota 510.
[xiii] “Nas hipóteses em que não haja estrita
vinculação, não se trata em rigor de condenação à prática de acto devido, mas
de condenação ao correcto exercício do poder discricionário”, idem, ibidem, nota 511.
[xiv] Quando um acto administrativo for
apenas em parte favorável ao particular, pode ser considerado, na parte em que
é desfavorável, um acto de indeferimento e, portanto, ser susceptível de
propiciar o pedido de condenação à prática do acto devido. Cfr. ALMEIDA, Mário
Aroso de, ob. cit., pp. 329 e 330, e
PIRES, Rita Calçada, O Pedido de
Condenação à Prática de Acto Administrativo Legalmente Devido – Desafiar a
Modernização Administrativa?, Almedina, Coimbra, 2004, p. 79.
[xv] V. ALMEIDA, Mário Aroso de/ Cadilha,
Carlos Alberto, Comentário ao Código de
Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, Coimbra, 2010, 3ª edição,
pp.448 e 449.
Bruna Alexandra Maurício Leitão, nº 19522
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