sexta-feira, 2 de novembro de 2012


Os Contra-interessados no Contencioso Administrativo

            A par do tradicional esquema de relação jurídica administrativa, vigora, actualmente, no seio do direito administrativo uma verdadeira relação trilateral (também denominada multipolar ou poligonal) de onde emergem litígios que justificam as posições de contra-interessados.
 Na verdade, o exercício de poderes de autoridade da Administração se, por lado, satisfaz interesses de um titular, por outro, implica necessariamente um desfavorecimento de interesses de outro (s) titular (s). Para melhor perceber o problema que aqui se elucida tome-se o seguinte exemplo: “um terceiro, vizinho, com interesse na manutenção do “status quo”, impugna uma autorização de construir dada a um proprietário[1]. Claramente se atenta pela existência de interesses contrapostos, tal como a situação de o mesmo vizinho pedir a demolição de um imóvel, interesse que se apresenta contraposto ao interesse do proprietário do imóvel na sua manutenção.
A existência destas situações, que se manifestam sobretudo nos domínios do direito do ambiente, urbanismo, património ou da economia, revelam a necessidade de se conceder protecção jurídica a nível procedimental e contencioso a estes “terceiros” em virtude da possibilidade de serem afectados positiva ou negativamente com as decisões administrativas.
O artigo 10º nº1 parte final do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante CPTA), atribui legitimidade aos contra-interessados, ao referir que a acção deve ser proposta “(…) contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor”. No âmbito da acção administrativa especial de impugnação de actos e no âmbito da acção administrativa especial de condenação à prática do acto devido, os artigos 57º e 68º, nº2, respectivamente, debruçam-se, em maior pormenor sobre a legitimidade destes interessados.

Deixando a análise dos artigos para um momento posterior, cumpre, antes de mais, analisar o fundamento processual para os contra-interessados.
Estes “terceiros[2] actuam processualmente em defesa dos seus próprios interesses existindo, assim, claramente, uma razão de índole subjectivista. Nesta medida é possível encontrar como primeiro fundamento o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa que garante a todas as pessoas o direito de acesso à justiça. Este princípio constitucional é complementado depois com a imposição do artigo 266º nº1 da Constituição de respeitar as posições jurídicas subjectivas dos administrados e ainda com o princípio da tutela jurisdicional efectiva a que se reporta o artigo 268º nº4 da Constituição que atribuí meios processuais para a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, não só aos titulares de posições subjectivas decorrentes da decisão administrativa, mas também a todos aqueles que possam vir a ser lesados.

Em segundo lugar a posição jurídica dos contra-interessados encontra fundamento no princípio do contraditório[3] e no princípio da igualdade das partes[4] pois, em cumprimento das exigências de um Estado de Direito é sempre necessário assegurar aos lesados nos seus direitos e interesses legítimos, a possibilidade de participar no processo.

Em terceiro lugar, a par da razão subjectiva, é possível encontrar um fundamento objectivo relacionado com a eficácia subjectiva do caso julgado, ou seja, são excluídos do âmbito da eficácia subjectiva das decisões judiciais todos aqueles a quem não foi assegurada a participação no processo, pois não podem ser prejudicados com a decisão. Corresponde a um fundamento de índole objectivista no sentido de se pretender defender o efeito útil da decisão e a ordem jurídica na sua globalidade.

Com esta indicação dos fundamentos que justificam a figura dos contra-interessados, conclui-se que estes possuem uma efectiva qualidade de parte, porém é necessário frisar que as suas situações subjectivas não definem o objecto desses processos, pois estes continuam a ser referenciados pela posição em que a Administração se encontra colocada, no exercício dos seus poderes de autoridade. Ao serem partes no processo, encontram-se numa situação de litisconsórcio necessário legal passivo e unitário[5] juntamente com a autoridade recorrida, na medida em que só assim se estende a eficácia subjectiva do caso julgado. A preterição desta imposição legal tem como consequência a ilegitimidade passiva que obsta ao conhecimento da causa – artigos 78º nº2 alínea f), 81º nº1 e 89º nº1 alínea f) do CPTA, e consequente inoponibilidade da decisão – artigo 155º nº2.

Chegou o momento de analisar os artigos 57º e 68 nº2 do CPTA.
Começando pelo primeiro, este artigo densifica o conceito de contra-interessados, considera-os como aqueles “(…) a quem o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado (…)” . Do preceito se depreende que foi adoptado, pela negativa, o mesmo critério patente no artigo 55º nº1 alínea a): alguém que tem um interesse directo e pessoal na manutenção do acto impugnado. Mas o preceito não se fica por aqui pois alarga o conceito, atribuindo legitimidade a todos aqueles que, embora não tenham sido directamente afectados, têm uma ligação com o acto impugnado por razões que são ainda tuteladas.[6]
Esta constatação de existência de prejudicados com a anulação do acto só se concluí no momento da sentença, pelo que se exige, um exercício de um juízo de prognose na determinação do universo dos contra-interessados, tendo-se em conta a eventual decisão futura e a partir daí identificar os eventuais sujeitos prejudicados.[7]
O artigo expõe, no prepósito de delimitar os titulares de interesses contrapostos e, na intenção de introduzir um critério objectivo, a necessidade destas pessoas serem “ (…) identificadas em função da relação material controvertida em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo.” A esta circunstância se refere o artigo 78º/2 CPTA ao exigir que o autor indique, na petição inicial, o nome e residência dos eventuais contra-interessados, sob pena desta ser rejeitada pela secretária nos termos do artigo 81º nº1 alínea b).

O artigo 68º nº2 CPTA identifica como contra-interessados aqueles “ (…) a quem a prática do acto omitido possa directamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse em que ele não seja praticado (…)”, sendo que para tal utiliza o mesmo critério objectivo indicado no artigo 57º CPTA.

Em jeito de conclusão poderemos, a título de exemplo, indicar o Acordão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 26/01/2012 processo nº 07771/11 a respeito desta matéria. No seguimento do recurso interposto da decisão do TAF de Loulé que conclui pela existência de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo, o Tribunal Central Administrativo vêm dar razão aos autores ao considerar que, na situação em apreço em que estava em questão a demolição do 1º andar da moradia, não há uma situação de litisconsórcio necessário passivo pois inexistem contra-interessados:
“ Ora acontece que não existem contra-interessados a ter no processo.
Do artigo 57 do C.P.T.A. se conclui que são contra -interessados as pessoas singulares ou colectivas a quem o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção de acto impugnado e que possam ser identificados em função da relação material em causa.
 É omissa a Douta Sentença recorrida, na indicação dos factos que permitem concluir que os proprietários das casas 7, 8 e 12 possam ser directamente prejudicados com o provimento do processo impugnatório, ou que tenham legítimo interesse na manutenção do acto impugnado. E não percebem os AA., como poderão os proprietários de tais casas, serem directamente prejudicados com o provimento do processo impugnatório ou qual o legítimo interesse que os mesmos possam ter na manutenção do acto impugnatório.”
Tendo em conta a referida decisão demonstra-se mais uma vez como é imperioso a existência de interesses por parte de terceiros, o que no caso não aconteceu pois “o provimento do processo impugnatório terá como consequência única, que se mantenha sem ser demolido o 1° andar da casa dos AA. que existe desde 1994, e que nunca foi posto em causa por ninguém até à prática do acto administrativo agora posto em crise”.


Bibliografia:
-ALMEIDA, Mário Aroso de, O novo regime do processo nos Tribunais Administrativos, Lisboa, Coimbra Editora, 2005;
-OLIVEIRA, Mário e Rodrigo Esteves de, Código de Processo nos Tribuanis Administrativos: estatuto dos tribunais administrativos e fiscais anotado, Volume I, Coimbra, Almedina, 2004;
-SILVA, Vasco Pereira de, O Contencioso Administrativo no Divâ da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2ªedição, Coimbra, Almedina, 2009;
-MACHETE, Rui Chancerelle de, A legitimidade dos contra-interessados nas acções administrativas comuns e especiais em Estudos em Homenagem ao Profº. Dr. Marcello Caetano no centenário do seu nascimento, Volume II, Coimbra Editora, 2006 págs. 611 e 630;
-OTERO, Paulo, Os contra interessados em contencioso administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final de procedimento concursal em Estudos em Homenagem ao Profº. Dr. Rogério Soares, Coimbra, 2001, págs 1073 e ss.

Jurisprudência:
- Tribunal Central Administrativo do Sul, acórdão de 26/01/2012 processo nº 07771/11

Lina Martins
Nº 19703
2 Novembro de 2012


[1] Exemplo retirado do artigo “legitimidade dos contra-interessados nas acções administrativas comuns e especiais” em “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Marcello Caetano, no centenário do seu nascimento, volume II, Coimbra Editora” da autoria de Rui Chancerelle de Machete, pág.618.
[2] Note-se que o Prof Vasco Pereira da Silva critica esta denominação pois considera que são sujeitos principais dotados de legitimidade e lamenta a ausência de regulação detalhada quanto aos mesmos. “O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2ªedição, 2009, pág. 373.
[3] Decorre do princípio do contraditório que ninguém pode ser afectado por uma decisão proferida num processo em que não foi parte, concluindo-se, assim, que aqueles que são atingidos pelos efeitos de uma decisão devem participar no processo.
[4]  Uma vez que a satisfação do direito de um interessado implica a frustração do exercício do direito do outro interessado, pressupõe-se que entre os dois se verifique uma posição de paridade face ao âmbito de protecção da garantia institucional.
[5]  A lei impõe a pluralidade de partes e a decisão do tribunal tem de ser uniforme para todos. Ainda que não houvesse uma imposição legal para esta situação de litisconsórcio, seria ainda caso de litisconsórcio necessário por natureza, aquele que implica a presença de todos os interessados pois, caso contrário, a decisão judicial não produziria o seu efeito útil normal. Era esta a opinião do Prof. Paulo Otero a respeito do antigo recurso contencioso de anulação. Vide “os contra-interessados em contencioso administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final” em “estudos em homenagem ao Prof. Dr. Rogério Soares”, págs 1073 e ss.
[6] Tal como “(…)impugnação de uma ordem de demolição decretada na sequência de um procedimento administrativo, aberto a requerimento de uma associação de defesa dos interesses do património cultural ou do ambiente.” Exemplo retirado do “Código de Processo nos Tribunais Administrativos: estatuto dos tribunais administrativos e fiscais anotado”, Volume I, pág. 376.
[7] O Profº Paulo Otero apresenta o exemplo de determinação dos contra-interessados no anterior recurso contencioso de procedimento concursal que envolva uma lista de ordenação dos vários concorrentes/candidatos, que parece ser válido para o actual processo de impugnação. “Os contra-interessados em contencioso administrativo: fundamento, função e determinação do universo em recurso contencioso de acto final” em “estudos em homenagem ao Prof. Dr. Rogério Soares”, págs 1073 e ss

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