quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O Recurso de Anulação


É no artigo 230º do Tratado da Comunidade Europeia que podemos encontrar o único preceito do Tratado que se refere ao recurso de anulação de actos e normas, não havendo qualquer referência expressa no Tratado em causa quanto ao âmbito da jurisdição administrativa e aos princípios fundamentais do processo. É no parágrafo 2 do mesmo artigo que encontramos enunciados os fundamentos de interposição do recurso: a incompetência, a violação de formalidades essenciais, violação do Tratado ou de qualquer norma jurídica relativa à sua aplicação e o desvio de poder.

Ao recurso de anulação, podemos atribuir a importância de ser um dos principais meios de zelar pela legalidade da actuação da Comunidade, visto possibilitar ao juiz pôr termo à vigência de normas ou actos de Direito Comunitário derivado que sejam ilegais, tal como o Professor Fausto Quadros e Professora Ana Guerra Martins referem, afirmando ainda que é “um importante instrumento de protecção jurisdicional dos particulares”.

Decorre do artigo 230º que a função do Contencioso Administrativo Comunitário é a defesa da Lei, sendo um sistema de natureza objectivista, centrado na tutela da legalidade dos actos e normas administrativas, baseado no exemplo francês.
Como qualquer sistema de base objectivista, tem como função primordial a fiscalização de legalidade, sendo os particulares meros auxiliares dessa mesma legalidade, pois a protecção dos direitos subjectivos dos lesados é secundária e está subordinada à defesa da Lei, pelo que só serão protegidos se a sua tutela coincidir com a tutela da legalidade. 
É precisamente da decorrência do artigo 230º que podemos depreender que o Contencioso Comunitário é um contencioso de actos jurídicos, que se limita a julgar as formas de actuação da Administração comunitária e como tal, não se coloca na hipótese de vir a apreciar a integralidade dos vínculos jurídicos e a enquadrar o particular e os seus direitos na acção em causa.

Professores Fausto Quadros e Ana Guerra Martins tendem a conferir natureza jurídica de “verdadeiro recurso e um recurso contencioso” ao recurso de anulação, e consequentemente, a considerá-lo um recurso de mera legalidade e “um instrumento de contencioso de mera anulação, não do contencioso de plena jurisdição”, colocando de parte qualquer vestígio da função subjectivista do contencioso comunitário.

Contudo, a doutrina claramente diverge. Fazendo o paralelismo com o Contencioso Administrativo português, Professor Vasco Pereira da Silva apresentava duas teses na altura em que a acção de recurso de anulação ainda predominava. A primeira é de que o “recurso de anulação não era um recurso”.
É necessário que estejamos perante a apreciação de uma relação jurídica controvertida para termos um concreto recurso. Desta forma, depreendemos e concordamos com o Professor Vasco Pereira da Silva, pois não podemos denominar de recurso uma figura que na sua aplicação prática de facto não o é, uma vez que o recurso compreende uma reapreciação de uma decisão judicial já sentenciada pelo juiz. Este recurso possuía um "nome herdado da história" que nada tinha a ver com a realidade, gerando razões de incerteza, por o seu próprio nome estar dissociado do seu objecto.


A segunda tese refere-se ao facto do recurso de anulação não ser apenas um recurso, visto não se tratar só de uma acção anulatória, pois casuisticamente falando, não se produzem apenas efeitos demolitórios mas também repristinatórios e conformadores, pois o seu objectivo não é só a proibição da Administração refazer o mesmo acto em causa, mas obrigar a mesma a reconstituir a situação actual e hipotética (efeito repristinatório) e condicionar o seu comportamento de modo a não refazer o acto (efeito conformador).

Com a Reforma de 2004, o Contencioso Administrativo perdeu a controversa figura do recurso de anulação, para agrado do Professor Vasco Pereira da Silva, sendo substituído pela Acção de Impugnação de Actos Administrativos, que resulta da faculdade de cumulação de pedidos (4º e 47º CPTA), que visa a apreciação global da relação jurídica administrativa devido à impugnação de uma acto administrativo lesivo. 

Contudo, a Reforma de 2004 apesar das inovações e vantagens, despertou uma questão contraditória e complexa, uma vez que o legislador consagra, por um lado, que todos os pedidos são admíssiveis e que se deve apreciar toda a relação jurídico-administrativa controvertida mas, por outro lado, o legislador tem por base o recurso de anulação anterior para qualificar a actual acção de anulação, sendo que tudo o que ultrapasse o âmbito de aplicação do recurso é tido como sendo uma cumulação de pedidos.
Assim sendo, a acção de impugnação e a cumulação de pedidos referem-se ao facto de integrarem uma acção de simples apreciação para averiguar os direitos dos particulares e uma acção de condenação (no caso de os direitos se verificarem) que confere ao particular a possibilidade de reagir contra a Administração Pública, tendo em vista a tutela dos seus direitos. O recurso de anulação torna-se assim num processo de plena jurisdição com o acompanhamento da flexibilização do conteúdo das sentenças do Contencioso Administrativo à realidade dos factos, com os tais efeitos repristinatórios e conformadores.


Parece-nos adequada a posição do Professor Vasco Pereira da Silva, relativamente a este assunto, já que é necessária uma actualização histórica do Contencioso Administrativo. Só assim podemos ter um Contencioso Administrativo claro, que se adapte à realidade e às necessidades dos particulares.


Podemos concluir que o recurso de anulação é uma verdadeira acção de impugnação de actos e normas administrativas e que o artigo 230º padece dos vícios do antigo sistema francês, cuja função é a da defesa da Lei, onde os direitos dos particulares são protegidos de forma indirecta. Penso que deverá ser revisto de modo a acabar com a sua natureza restritiva e diminuindo a margem de discricionariedade que deixa aos tribunais, pois gera situações de violação dos principios da legalidade, igualdade e segurança jurídica.


Bibliografia: SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as acções no novo Processo Administrativo, 2ª edição, Almedina, 2009 

                         QUADROS, Fausto de/MARTINS, Ana Maria Guerra, Contencioso Comunitário, 2ª edição, Almedina, 2009


Catarina Baltazar Silva
Nº 19544

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