Legitimidade
A autonomização do tratamento da legitimidade como
pressuposto processual no âmbito do CPTA justifica-se pela relevância das
especificidades que, a diversos níveis, o contencioso administrativo apresenta
neste domínio, distintas do que resulta da teoria geral do processo adoptada em
processo civil.
O CPTA assume a legitimidade como um pressuposto
processual e não como uma condição de procedência da acção, cuja titularidade
se afere, portanto, por referência às alegações produzidas (“…quando alegue ser
parte…”), tal como refere o Professor Mário Aroso de Almeida.
Deste modo, a legitimidade constitui o elo entre a
relação jurídica substantiva e a processual, destinando-se a trazer a juízo os
titulares da relação material controvertida, a fim de dar sentido útil às
decisões dos tribunais. A legitimidade constitui um pressuposto
processual referente às partes no processo.
A opção, entretanto, de estabelecer na Parte Geral, um
regime geral em matéria de legitimidade é inovadora e parte do entendimento de
que a questão da legitimidade processual deve ser encarada como um
fenómeno eminentemente processual, de âmbito geral, respeitante à
situação das partes no processo, sem que nada justifique que, a respeito da
natureza do instituto, se adopte, no domínio do contencioso administrativo, uma
perspectiva sensivelmente diferente da que é adoptada em processo civil.
O pressuposto da legitimidade não se confunde com o do
interesse processual. Com efeito, pode não haver qualquer dúvida quanto à
questão de saber se quem está em juízo é parte na relação material, tal como o
autor a configurou e, no entanto pode questionar-se a existência de uma
necessidade efectiva de tutela judiciária e, portanto, de factos objectivos que
tornem necessário o recurso à via judicial.
Regime da legitimidade
O CPTA regula separadamente as questões da
legitimidade activa e da legitimidade passiva.
É assim que, na Parte Geral do Código, encontramos o
artigo 9º, dedicado à legitimidade activa, e o artigo 10º, dedicado à
legitimidade passiva.
A explicação para o facto encontra-se na circunstância
de que, seja no que toca à definição do regime geral, como no que se refere à
definição de regimes especiais, são numerosos e diferenciados os aspectos a
regular quanto à legitimidade activa.
Como, com efeito, resulta da ressalva expressa da
existência de regimes especiais, contida na parte inicial do artigo 9º, nº 1, a
matéria da legitimidade activa no novo contencioso administrativo não se
encontra apenas regulada no artigo 9º, mas também no artigo 40º, respeitante à
legitimidade em acções relativas a contratos, e nos artigos 55º, 57º, 68º e
73º, referentes às pretensões que se fazem valer pela via da acção
administrativa especial. Em contrapartida, o regime da legitimidade passiva
resulta, praticamente por inteiro, do artigo 10º.
A explicação para a existência de um conjunto de
regimes especiais, ao lado do regime comum, em matéria de legitimidade activa
decorre da circunstância de a legitimidade ser um pressuposto processual que se
afere em função da concreta relação que se estabelece entre a parte e o objecto
do processo. Compreende-se, por isso, que o CPTA tenha optado por estabelecer
regimes especiais de legitimidade a propósito dos principais tipos de
pretensões dedutíveis perante os tribunais administrativos.
Como aspecto comum, os regimes especiais apresentam o
alargamento da legitimidade activa, para além dos limites, reportados à
(alegada) titularidade da relação material controvertida, em que ela é, à
partida, definida no artigo 9º, nº 1. Este é, na verdade, o plano em que mais
se evidencia a filosofia inspiradora do processo administrativo, de procurar o
necessário equilíbrio entre dimensão subjectiva e dimensão objectiva, na
certeza de que o aperfeiçoamento do sistema no sentido de proporcionar aos
cidadãos a mais efectiva tutela dos seus direitos e interesses em nada contende
com o aproveitamento, em paralelo, das vantagens efectivas associadas aos
aspectos objectivistas tradicionais, que lhe permitem funcionar (também) como
um instrumento de protecção dos mais relevantes interesses públicos. Pelo
contrário, do que se trata é de assegurar que o contencioso administrativo proporcione
a mais efectiva tutela a quem quer que se lhe dirija — admitindo, entretanto,
que não sejam só os indivíduos a poderem dirigir-se à jurisdição
administrativa, em defesa dos seus direitos e interesses particulares, mas que
também se lhe possam dirigir o Ministério Público, as entidades públicas, as
associações cívicas e os próprios cidadãos, uti cives, em defesa de interesses
públicos, colectivos e difusos (é o que, desde logo, sucede no regime especial
de legitimidade activa nas acções sobre contratos.) O alargamento da
legitimidade activa quanto à dedução dos quatro tipos de pretensões que o CPTA
faz corresponder à forma da acção administrativa especial explica-se, porque
essas pretensões dizem respeito ao exercício de poderes de autoridade por parte
da Administração, matéria que, embora contenda, muitas vezes, com situações
jurídicas individuais, se reveste de um significado muito mais vasto, por
envolver a disposição de interesses públicos, no respeito pelo princípio da
legalidade, valor que respeita a toda a comunidade e cuja garantia está
institucionalmente a cargo de um conjunto de entidades públicas.
Regime comum: artigo 9º do CPTA
As soluções consagradas no artigo 9º, nº 1 e nº
2, retomam, no essencial, as que resultam, respectivamente, dos artigos 26º e
26º-A do CPC. O regime do artigo 9º, nº 1, corresponde ao que estabelece o
artigo 26º, nº 3, do CPC, ao assumir que, salvo disposição legal em sentido
diferente, a regra é a de que a legitimidade para discutir qualquer relação
jurídica controvertida em juízo corresponde a quem alegue ser parte nessa
relação jurídica: por conseguinte, “o autor é considerado parte legítima quando
alegue ser parte na relação material controvertida”.
A legitimidade em defesa de interesses
difusos
O artigo 9º, nº 2, consagra um regime de
extensão da legitimidade, reconhecendo ao Ministério Público, às autarquias
locais, às associações e fundações defensoras dos interesses em causa e, em
geral, a qualquer pessoa singular, enquanto membro da comunidade, o direito de
lançar mão de todo e qualquer meio processual, principal ou cautelar, existente
no contencioso administrativo, para defesa dos valores que enuncia. Tal como
sucede com o artigo 26º-A do CPC, e em termos semelhantes, o artigo 9º, nº 2,
determina, pois, para os casos aí previstos, a extensão da legitimidade
processual a quem não alegue ser parte numa relação material que se proponha
submeter à apreciação do tribunal. Embora o preceito não utilize a
expressão e se refira a um conjunto mais alargado de entidades, que compreendem
o Ministério Público e as autarquias locais, ele tem designadamente em vista o
exercício por parte dos cidadãos, no âmbito do contencioso administrativo, do
direito de acção popular para defesa de “valores e bens constitucionalmente
protegidos como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do
território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das
Regiões Autónomas e das autarquias locais”, direito que a CRP lhes reconhece,
como um direito fundamental de participação política, no artigo 52º, nº 3. Como
adiante se verá, esta não é a única forma, mas é uma das formas de acção
popular que são admitidas em processo administrativo — uma forma de acção
popular que se define pela defesa daqueles valores, constitucionalmente
protegidos.
Regimes especiais
Dentro dos regimes especiais encontramos, legitimidade
activa nas acções sobre contratos (art. 40º do CPTA), legitimidade activa nas
acções de impugnação de actos administrativos (art. 55º do CPTA), legitimidade
activa nas acções de condenação à prática de actos administrativos (art. 68º,
nº 1, do CPTA), legitimidade activa nas acções de impugnação e declaração de
ilegalidade por omissão de regulamentos (arts. 73º e 77º do CPTA). No entanto,
destacam-se os critérios da legitimidade activa nas acções de impugnação de
actos administrativos (art. 55º do CPTA) e da legitimidade activa nas acções de
condenação à prática de actos administrativos (art. 68º, nº 1, do CPTA).
Devido à densidade das matérias, analisarei apenas a
legitimidade relativamente ás acções de impugnação de actos administrativos.
Legitimidade activa nas acções de impugnação de actos
administrativos (art. 55º do CPTA)
O tema é regulado no artigo 55º, que se refere a oito
categorias de pessoas e entidades legitimadas a impugnar actos administrativos,
pedindo a sua anulação ou a declaração da sua nulidade ou inexistência.
Em primeiro lugar, tem legitimidade para
impugnar quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal,
designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses
legalmente protegidos: cfr. artigo 55º, nº 1, alínea a). A utilização da
fórmula “interesse directo e pessoal”, em contraposição à ideia de lesão de
direitos ou interesses legalmente protegidos, que é apresentada como, uma das
suas formas de concretização possível, aponta no sentido de que a legitimidade
individual para impugnar actos administrativos não tem de basear-se na ofensa
de um direito ou interesse legalmente protegido, mas se basta com a
circunstância de o acto estar a provocar, no momento em que é impugnado,
consequências desfavoráveis na esfera jurídica do autor, de modo que a anulação
ou a declaração de nulidade desse acto lhe traz, pessoalmente a ele, uma
vantagem directa (ou imediata).
Como é da tradição do nosso contencioso
administrativo, a anulação ou a declaração de nulidade de actos administrativos
pode ser, portanto, pedida a um tribunal administrativo por quem nisso tenha
interesse, no sentido em que reivindica para si próprio uma vantagem jurídica
ou económica que há-de resultar dessa anulação ou declaração de nulidade.
No que se refere aos requisitos do carácter “directo”
e “pessoal”, deve, ser estabelecida uma distinção entre um e outro. Na verdade,
só o carácter “pessoal” do interesse diz verdadeiramente respeito ao
pressuposto processual da legitimidade, na medida em que se trata de exigir que
a utilidade que o interessado pretende obter com a anulação ou a declaração de
nulidade do acto impugnado seja uma utilidade pessoal, que ele reivindique para
si próprio, de modo a poder afirmar-se que quem impugna é considerado parte
legítima porque alega ser, ele próprio, o titular do interesse em nome do qual
se move no processo. Já o carácter “directo” do interesse tem que ver com a
questão de saber se existe um interesse actual em pedir a anulação ou a
declaração de nulidade do acto que é impugnado. Admitindo que quem impugna é
efectivamente o titular do interesse, trata-se de saber se esse interesse é
actual, no sentido de que existe uma situação efectiva de lesão que justifique
a utilização do meio de impugnação (já não tem, pois, que ver com a
legitimidade processual, mas com a questão de saber se o alegado titular do
interesse (que, por isso, é parte legítima no processo) tem efectiva
necessidade de tutela judiciária, ou seja, tem que ver com o seu interesse
processual).
Esta ideia resulta do artigo 55º, nº 1, alínea a), que
a título meramente ilustrativo, se refere à hipótese de quem impugna “ter sido
lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses”. Neste artigo, apela-se: que
terá legitimidade a pessoa que alegue ser titular do direito ou interesse e o
seu interesse processual radica na alegação de ter sido lesada nesse seu
direito ou interesse - o interesse é pessoal (legitimidade processual) e
directo (interesse processual).
É de realçar que, de harmonia com a posição assumida
sobre a matéria no artigo 9º, nº 1, o preenchimento do requisito da
legitimidade processual deixa, também neste domínio, de exigir a
verificação da efectiva titularidade da situação jurídica invocada pelo autor,
para se bastar com a alegação dessa titularidade. O que, naturalmente, não
impede, mas antes obriga o tribunal, logo que porventura verifique que o
interessado não é titular da situação jurídica alegada, a julgar, por esse
facto, improcedente a impugnação (Professor Mário Aroso de Almeida).
A acção pública continua, entretanto, a ser prevista,
sem quaisquer limitações, no artigo 55º, nº 1, alínea b). O Ministério Público
tem, portanto, legitimidade para impugnar todo e qualquer acto administrativo,
com o puro propósito de “defender a legalidade democrática e promover a
realização do interesse público” (artigo 51º do ETAF).
O CPTA reconhece também legitimidade para
impugnar actos administrativos às pessoas colectivas públicas, quanto aos
direitos e interesses que lhes cumpra defender (artigo 55º, nº 1, alínea c)).
Esta situação não se encontrava, até aqui, expressamente prevista na lei,
embora a jurisprudência viesse reconhecendo que também entidades públicas
podiam impugnar actos administrativos em defesa de interesses próprios, no âmbito
de relações jurídicas inter-administrativas.
Como é evidente, para que a impugnação se inscreva nas
incumbências de uma pessoa colectiva pública, é necessário que o acto impugnado
contenda com os interesses legalmente estabelecidos como atribuições dessa
pessoa colectiva (não é, naturalmente, necessário que o poder de impugnar
esteja expressamente previsto no quadro das competências de algum dos órgãos da
entidade pública em causa).
É de frisar que a previsão do artigo 55º, nº 1, alínea
c), tem um duplo alcance, na medida em que também reconhece legitimidade para
impugnar actos administrativos às pessoas colectivas privadas, quanto aos
direitos e interesses que lhes cumpra defender. Está aqui em causa a previsão
expressa da possibilidade, que já vinha sendo reconhecida pela jurisprudência,
de as associações de qualquer tipo (o que inclui associações políticas,
sindicais e patronais) agirem em processo, no respeito pelo princípio da
especialidade, em defesa dos direitos e interesses dos seus associados.
O CPTA introduz, entretanto, a possibilidade de
um órgão administrativo de uma determinada pessoa colectiva de direito público
impugnar actos praticados por outros órgãos da mesma pessoa colectiva: cfr.
artigo 55º, nº 1, alínea d).
Esta possibilidade de impugnação apenas deve ser
admitida quando os actos em causa, no específico contexto das relações
inter-orgânicas em que se inscrevam, ponham em causa o direito dos órgãos que
impugnam ao exercício, sem interferências ou perturbações ilegais, de
competências independentes que lhes tenham sido atribuídas para a prossecução
de interesses específicos, pelos quais eles sejam directamente responsáveis.
Actualmente, a realidade interna das entidades públicas tende, na verdade, a
ser crescentemente caracterizada por fenómenos de conflitualidade que decorrem
de opções, ao nível da distribuição de competências, assentes na atribuição aos
diferentes órgãos de esferas de acção própria. e, portanto, na respectiva
constituição como “sujeitos de ordenação e de imputação final (não apenas
transitória) de poderes e de deveres”, em posição de antagonismo perante outros
órgãos da mesma entidade pública. Deste modo, o CPTA admite a impugnabilidade
de actos que, no plano intra-administrativo, sejam praticados por órgãos de uma
entidade pública e se dirijam a outros órgãos pertencentes a essa mesma
entidade, no âmbito do que tem sido qualificado como relações
inter-orgânicas.
No novo contencioso, é possível a impugnação de actos
sem eficácia externa, que não se dirigem a fixar os direitos da Administração
ou dos particulares, ou os respectivos deveres, no âmbito das relações
jurídicas que entre uma e outros se estabelecem, e que, portanto, devem ser
qualificados como internos. Fundamental, é que os mesmos sejam impugnados por quem,
nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 55º, possui legitimidade para o
efeito.
O artigo 55º, nº 1, alínea e), refere-se
genericamente à possibilidade de outras autoridades, para além do Ministério
Público, serem legitimadas por lei avulsa a impugnar actos administrativos em
defesa da legalidade administrativa — fazendo, entretanto, menção expressa a um
desses casos, que se encontra previsto no artigo 14º, nº 4, do CPA e se refere
à legitimidade dos presidentes de órgãos colegiais para impugnarem actos
praticados por esses órgãos. O preceito confirma, pois, que só com fundamento
em previsão normativa especial podem os titulares de órgãos administrativos
impugnar decisões dos respectivos órgãos. Assim, por exemplo, o
Presidente da Câmara tem legitimidade para impugnar as deliberações camarárias,
com fundamento no referido artigo 14º, nº 4, do CPA, mas já continuam a não a
ter os vereadores, na medida em que nenhuma norma lhes confere, enquanto tais,
o poder de impugnarem essas deliberações.
O artigo 55º, nº 1, alínea f), confirma a
legitimidade das pessoas e entidades mencionadas no nº 2 do artigo 9º para
impugnarem actos administrativos que ponham em causa os valores referidos nesse
preceito ( a remissão é inócua na parte em que se refere ao Ministério Público,
na medida em que a legitimidade do Ministério Público para impugnar actos administrativos
já resulta do artigo 55º, nº 1, alínea b), e com um âmbito ilimitado e,
portanto, mais alargado do que o que resultaria da previsão do artigo 9º, nº
2).
O CPTA prevê, no artigo 55º, nº 2, a clássica
acção popular local ou autárquica, de profundas tradições no domínio do
contencioso de impugnação de actos administrativos.
Neste âmbito de legitimidade, coloca-se a dúvida de
saber se se justifica manter tal dualidade de regimes de acção popular? Ou
deve entender-se que a denominada acção popular correctiva, foi absolvida
pela acção genérica, que tem maior amplitude e é susceptível de tutelar os
mesmos bens?
Na opinião do Professor Vasco Pereira da Silva, a
acção popular correctiva caducou em face da acção popular genérica, já que esta
ultima é mais ampla e forçosamente absorve a anterior. Da perspectiva dos
sujeitos, a previsão de “qualquer pessoa” da acção popular genérica abrange
forçosamente “qualquer eleitor” da acção autárquica.
Ana Luísa Silva Moreira
Nº19476
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2012.
SILVA, Vasco Pereira da, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as acções no novo Processo Administrativo, 2ª edição, Almedina, 2009.
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