O jornal Público anuncia
que os "[a]utarcas prometem lutar nos tribunais contra a redução de
freguesias".
Deixando de parte a pertinência do processo de criação,
extinção e fusão de quase mil e duzentas freguesias em todo o território
nacional, particularmente no norte do país, interessa-nos saber por que meio(s)
e a que título podem os autarcas atacar a decisão.
Desde logo, a Câmara Municipal de Leiria pretende avançar
com providências cautelares.
A providência cautelar assume-se como um meio processual
urgente e acessório, pelo que dependerá de uma causa principal a ser proposta
junto do tribunal competente supervenientemente.
A figura da providência cautelar vem prevista no CPTA, nos
artigos 112.º e seguintes, dispondo o art. 112.º, n.º 2, que "além das providências
especificadas no Código de Processo Civil, com as adaptações que se
justifiquem, nos casos em que se revelem adequadas, as providências
cautelares a adoptar podem consistir (...)" na suspensão de eficácia de um
acto ou norma administrativos (al. a)), de
entre todas as outras providências de natureza processual administrativa,
elencadas nas restantes alínas do número 2 do artigo 112.º do CPTA.
Será essa providência cautelar que, em princípio e sem
prejuízo de outras possíveis, a Câmara Municipal de Leiria poderá intentar
contra o Governo.
Contudo, dada a natureza acessória da providência cautelar,
carece o processo de uma acção principal.
No caso, a Câmara Municipal de Leiria invoca a
inconstitucionalidade da lei que aprova a reorganização
autárquica. Diz o Presidente do órgão, como veicula a notícia, que "esta lei [ Lei 22/2012, de 30 de Maio ] é inconstitucional
por haver discriminação negativa".
Ora, uma lei não é um acto administrativo: um acto
administrativo é o acto
jurídico unilateral praticado, no exercício do poder administrativo, por um
órgão da Administração, ou por outra entidade para tal habilitada por lei, e
que traduz a decisão de uma caso considerado pela Administração, visando
produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta[1].
A (in)constitucionalidade da Lei
22/2012, de 30 de Maio, que é acto legislativo, nunca poderia ser apreciada por
um tribunal administrativo: por um lado, a declaração de (in)constitucionalidade
pertence ao Tribunal Constitucional (cf. artigos 221.º e 223.º da
Constituição da República Portuguesa); por outro, a própria natureza
legislativa e não administrativa da lei determina que os tribunais
administrativos o não possam fazer, pelo que ficamos com estas duas faces,
positiva e negativa, da mesma medalha.
A cargo do tribunal
administrativo ficariam, sim, os actos administrativos que visassem a
efectivação da lei supramencionada, visando produzir efeitos jurídicos numa
situação (...) concreta.
Assim, o tribunal administrativo
competente poderia suscitar a questão da (in)constitucionalidade dos actos em
apreço, por, como alega a Câmara Municipal de Leiria através do seu
presidente, se estar perante um caso de “discriminação
negativa”.
Essa “discriminação negativa”
teria, em minha opinião, por base o artigo 13.º da Constituição: “[n]inguém
pode ser (...) prejudicado (...) em razão de (...) território de origem” (art.
13.º, n.º 2).
A questão mais controvertida,
parece-me, será a de avaliar em que medida é que os particulares residentes nas
circunscrições territoriais afectadas pela Lei 22/2012 serão de facto
prejudicados. Outra questão: serão só os do Município de Leiria ou todos
aqueles que verão as suas freguesias extinguidas ou fundidas com outras? Outra
questão ainda: aqueles que residem numa circunscrição territorial que terá uma
freguesia própria, nova, distinta da actual, serão, também eles, prejudicados?
Afinal, uma das razões que
subjazem à iniciativa do Governo é que a Reforma Administrativa Autárquica será
“um veículo de descentralização de políticas”, conforme se vê no Documento Verde da Reforma da Administração Local (pp. 5, 7 e 8, por exemplo) e o princípio da
descentralização administrativa é estruturante do poder autárquico e do Direito
Administrativo nacional (v. art. 237.º, n.º 1. CRP). Mais: só o é porque se
entendeu que a descentralização administrativa local permitiria ao
administrador acompanhar de mais perto os administrados.
O facto da Câmara Municipal de
Leiria atacar a própria constitucionalidade da lei, virá pôr em risco a
validade do diploma integralmente, pelo que se levanta a questão de saber se o
fundamento para travar a reforma administrativa autárquica deverá, a bem dos
próprios cidadãos e municípios, a inconstitucionalidade da Lei 22/2012.
Se assim for, à providência
cautelar deverá seguir-se uma acção administrativa especial de impugnação.
Os actos que visem a
implementação da reforma serão - atenta a argumentação da Câmara Municipal de
Leiria - nulos com base no desrespeito pelo princípio constitucional da
igualdade (cf. arts. 13.º, n.º 2, CRP; 133.º, números 1 e 2, al. d),
CPA; 50.º, n.º 1, CPTA).
Os tribunais administrativos
serão competentes à luz do estatuído no artigo 4.º, n.º1, alínea j), do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, já que há um conflito entre
os interesses prosseguidos por pessoas colectivas de Direito Público.
Na eventualidade do tribunal não
dar razão à autora, caberá sempre recurso para o Tribunal Constitucional (art.
280.º, nº 1, alínea a), CRP).
[1] FREITAS
DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito
Administrativo, Volume II, Coimbra, 2011, pp. 238-239
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